conto: hope there's someone
HOPE THERE'S SOMEONE
para a Sónia
São sete horas de uma manhã gelada de inverno e uma luz branca e baça banha a gare vazia da estação de comboios. A única outra pessoa na plataforma é um palhaço de aspecto exausto, o rosto pintado com duas grossas lágrimas que escorrem pelas faces e pela camisa de listras garridas. Segura uma mala de cabedal, que, apesar de gasta e suja, parece conter todos os seus pertences e todas as suas riquezas. De facto, a mala parece ser uma extensão do braço que a segura, e da mão que aperta a asa com tanta força que os nós dos dedos enluvados ficam retesados e exangues. Pode ser que seja da estranha pintura do rosto, mas o palhaço tem aspecto de quem sempre esteve naquele preciso ponto da plataforma vazia, de quem perdeu o mundo de onde veio e ainda não encontrou a porta de entrada para um outro mundo qualquer, eternamente parado e perdido entre dois comboios. É como se uma tristeza antiga lhe tivesse ficado colada ao rosto e hoje ele já nem se lembrasse da razão dessa tristeza. As lágrimas secaram, mas deixaram o rastro bem marcado. A cabeleira farta e eriçada mantém a memória de que há um momento e uma vontade de pousar a cabeça e descansar, mas é como se se tivesse esquecido, por falta de hábito, de que há essa possibilidade, e que ela se resume a um movimento que ele parece ter apagado por completo. O seu rosto enfarinhado e pálido não tem expressão, só as grossas lágrimas pintadas, e os olhos parados fitam um ponto que não existe, nem dentro nem fora do edifício da estação, talvez só exista no traço de ar rasgado que fica a redemoinhar depois de passar um comboio sem paragem. A camisa berrante do palhaço parece vazia por dentro, como se o tronco que o habita tivesse definhado à espera de um abraço que o cingisse, e do coração não restasse mais do que as cinzas de um fogo que o consumiu há demasiado tempo.
À medida que a manhã se vai desprendendo da linha do horizonte, a estação vai-se enchendo de passageiros que ocupam por completo a plataforma. Ouve-se um silvo, que começa pequeno ao longe, e vai crescendo de proximidade. Um comboio, fogoso, negro e fantasmagórico, entra na gare e os passageiros entram todos nele. O silvo afasta-se agora, desaparecendo na curva da distância. O sol roda veloz pelas aberturas dos telhados da estação, que se enche novamente de passageiros. O ruído dos comboios a chegar e a partir torna-se ritmado, como uma cadência obstinada. A mesma cadência obstinada com que uma multidão cerrada de passageiros enche e esvazia a plataforma, a mesma cadência obstinada com que os raios incandescentes do sol vão rodando pelas aberturas dos telhados da estação, e desenhando brilhos refulgentes e sombras pesadas no chão, nas paredes, nos muros.
Há agora o zumbido surdo e eléctrico e pálido das luzes que prolongam e eternizam o dia na gare da estação. A única outra pessoa na plataforma é ainda o palhaço de aspecto exausto e grossas lágrimas pintadas no rosto, e que segura uma mala de cabedal gasta, suja e vazia.
para a Sónia
São sete horas de uma manhã gelada de inverno e uma luz branca e baça banha a gare vazia da estação de comboios. A única outra pessoa na plataforma é um palhaço de aspecto exausto, o rosto pintado com duas grossas lágrimas que escorrem pelas faces e pela camisa de listras garridas. Segura uma mala de cabedal, que, apesar de gasta e suja, parece conter todos os seus pertences e todas as suas riquezas. De facto, a mala parece ser uma extensão do braço que a segura, e da mão que aperta a asa com tanta força que os nós dos dedos enluvados ficam retesados e exangues. Pode ser que seja da estranha pintura do rosto, mas o palhaço tem aspecto de quem sempre esteve naquele preciso ponto da plataforma vazia, de quem perdeu o mundo de onde veio e ainda não encontrou a porta de entrada para um outro mundo qualquer, eternamente parado e perdido entre dois comboios. É como se uma tristeza antiga lhe tivesse ficado colada ao rosto e hoje ele já nem se lembrasse da razão dessa tristeza. As lágrimas secaram, mas deixaram o rastro bem marcado. A cabeleira farta e eriçada mantém a memória de que há um momento e uma vontade de pousar a cabeça e descansar, mas é como se se tivesse esquecido, por falta de hábito, de que há essa possibilidade, e que ela se resume a um movimento que ele parece ter apagado por completo. O seu rosto enfarinhado e pálido não tem expressão, só as grossas lágrimas pintadas, e os olhos parados fitam um ponto que não existe, nem dentro nem fora do edifício da estação, talvez só exista no traço de ar rasgado que fica a redemoinhar depois de passar um comboio sem paragem. A camisa berrante do palhaço parece vazia por dentro, como se o tronco que o habita tivesse definhado à espera de um abraço que o cingisse, e do coração não restasse mais do que as cinzas de um fogo que o consumiu há demasiado tempo.
À medida que a manhã se vai desprendendo da linha do horizonte, a estação vai-se enchendo de passageiros que ocupam por completo a plataforma. Ouve-se um silvo, que começa pequeno ao longe, e vai crescendo de proximidade. Um comboio, fogoso, negro e fantasmagórico, entra na gare e os passageiros entram todos nele. O silvo afasta-se agora, desaparecendo na curva da distância. O sol roda veloz pelas aberturas dos telhados da estação, que se enche novamente de passageiros. O ruído dos comboios a chegar e a partir torna-se ritmado, como uma cadência obstinada. A mesma cadência obstinada com que uma multidão cerrada de passageiros enche e esvazia a plataforma, a mesma cadência obstinada com que os raios incandescentes do sol vão rodando pelas aberturas dos telhados da estação, e desenhando brilhos refulgentes e sombras pesadas no chão, nas paredes, nos muros.
Há agora o zumbido surdo e eléctrico e pálido das luzes que prolongam e eternizam o dia na gare da estação. A única outra pessoa na plataforma é ainda o palhaço de aspecto exausto e grossas lágrimas pintadas no rosto, e que segura uma mala de cabedal gasta, suja e vazia.