cfa
E vão três.
Foi na noite do dia 16 de Abril (parece há tanto e há tão pouco tempo) que o Saint-Clair apareceu no hotel de Copacabana com um carregamento de livros, um kit de sobrevivência de literatura brasileira, como ele lhe chamou, para me redimir e resgatar da minha absoluta e vergonhosa ignorância acerca da literatura brasileira contemporânea.
Lugar de destaque no kit, os livros de Caio Fernando Abreu, romancista, contista e dramaturgo, homem do mundo e testemunho vivo (e literário) de uma certa maneira de estar, no Brasil e no mundo, naqueles desesperados e hedonistas anos que mediaram entre a revolução sexual e a descoberta pelos homossexuais de que havia vida para além da clandestinidade, e o advento, dez ou quinze ou vinte anos depois, do ignominioso vírus da sida.
CFA foi o cronista em língua portuguesa por excelência desses anos transviados, e dos negros tempos da peste durante os quais a sida era doença de homossexuais e, como tal, 'let them die'. Ora, como sempre, os criadores que revelam uma sintonia quase milimétrica com os homens e os ares e as ideias e os dramas do seu tempo, são precisamente aqueles que mais eficazmente se libertam dos grilhões do tempo e ascendem à intemporal e olímpica condição de clássicos.
Voltando a essa inesquecível noite de Abril, poucas horas depois de o saco de livros me ter passado para as mãos, peguei num dos livros de CFA, precisamente o que me pareceu mais adequado à intermitente concentração de turista, e comecei a ler. Era uma recolha de crónicas, 'Pequenas Epifanias', e de imediato senti que CFA era um daqueles autores que 'me contava', aqueles que nos ajudam a sintetizar, a resolver, a clarificar, a nossa própria vida. Aqueles que nos escrevem, como se as palavras habitassem cada um dos nossos dias.
Três livros depois, e com mais cinco em espera para ler, não tenho dúvidas em colocar os livros de CFA na prateleira d’ «os meus livros». ‘Pequenas Epifanias’ ficará sempre como o livro da descoberta do autor, mas ficará também como o exemplo do tipo de escrita, a crónica íntima do quotidiano, que eu mais gosto de escrever, e nesse sentido, o livro é também uma espécie de manual da arte de ‘como fazer’.
O segundo livro que li, e até agora o meu preferido, foi ‘Os Dragões Não Conhecem O Paraíso’, uma estonteante colecção de contos, que contém pelo menos dois contos que já são clássicos indiscutíveis: ‘Linda, Uma História Horrível’ e ‘Dama Da Noite’. Mas que além desses, tem mais dois ou três contos extraordinários. O meu preferido é o último conto do livro, que tem o título do volume, e que na minha opinião traduz de forma perfeita um dos sintomas não sei se meramente geracional ou se mais abrangente do que isso, e que é sentirmo-nos mal na nossa pele mas sentirmo-nos bem na vida. Estarmos felizes por estarmos vivos, mas termos sempre a lúcida e aguda certeza de que há uma terrível fractura que nos dilacera por dentro.
‘Pedras De Calcutá’ foi um dos primeiros livros de CFA e reflecte o ambiente ainda demasiado enclausurado e asfixiante em que foi escrito. Um livro sombrio, cujos contos, muito curtos, vivem sempre entre dois pólos: a completa submersão (como os textos que abrem cada uma das partes e que nos falam de inevitáveis afogamentos/naufrágios, em que nos afogamos por acção daquilo que trazemos dentro e que não conseguimos mais conter) e a possibilidade redentora de uma ascensão.
A literatura é um mundo mais vasto do que o tempo das nossas vidas. Como é óbvio. Por isso, é sempre muito mais o que desconhecemos do que o que vamos conhecendo. Muito de vez em quando (CFA escreveria ‘vezenquando’) encontramos um autor que, como disse, se cola à nossa pele por dentro. Quando isso me acontece, e já tem acontecido, felizmente, algumas vezes, é uma vontade quase febril de não parar de ler enquanto sabemos que há uma frase escrita pelo autor que aguarda, virginal e poderosa como o deserto ou o oceano, a visita dos nossos olhos. Como digo, tenho mais cinco livros de CFA à espera de leitura. Ou seja, a aventura continua.
Sites sobre Caio:
- caio.itgo.com (site muito completo; inclui contos)
- Releituras (inclui contos)
Foi na noite do dia 16 de Abril (parece há tanto e há tão pouco tempo) que o Saint-Clair apareceu no hotel de Copacabana com um carregamento de livros, um kit de sobrevivência de literatura brasileira, como ele lhe chamou, para me redimir e resgatar da minha absoluta e vergonhosa ignorância acerca da literatura brasileira contemporânea.
Lugar de destaque no kit, os livros de Caio Fernando Abreu, romancista, contista e dramaturgo, homem do mundo e testemunho vivo (e literário) de uma certa maneira de estar, no Brasil e no mundo, naqueles desesperados e hedonistas anos que mediaram entre a revolução sexual e a descoberta pelos homossexuais de que havia vida para além da clandestinidade, e o advento, dez ou quinze ou vinte anos depois, do ignominioso vírus da sida.
CFA foi o cronista em língua portuguesa por excelência desses anos transviados, e dos negros tempos da peste durante os quais a sida era doença de homossexuais e, como tal, 'let them die'. Ora, como sempre, os criadores que revelam uma sintonia quase milimétrica com os homens e os ares e as ideias e os dramas do seu tempo, são precisamente aqueles que mais eficazmente se libertam dos grilhões do tempo e ascendem à intemporal e olímpica condição de clássicos.
Voltando a essa inesquecível noite de Abril, poucas horas depois de o saco de livros me ter passado para as mãos, peguei num dos livros de CFA, precisamente o que me pareceu mais adequado à intermitente concentração de turista, e comecei a ler. Era uma recolha de crónicas, 'Pequenas Epifanias', e de imediato senti que CFA era um daqueles autores que 'me contava', aqueles que nos ajudam a sintetizar, a resolver, a clarificar, a nossa própria vida. Aqueles que nos escrevem, como se as palavras habitassem cada um dos nossos dias.
Três livros depois, e com mais cinco em espera para ler, não tenho dúvidas em colocar os livros de CFA na prateleira d’ «os meus livros». ‘Pequenas Epifanias’ ficará sempre como o livro da descoberta do autor, mas ficará também como o exemplo do tipo de escrita, a crónica íntima do quotidiano, que eu mais gosto de escrever, e nesse sentido, o livro é também uma espécie de manual da arte de ‘como fazer’.
O segundo livro que li, e até agora o meu preferido, foi ‘Os Dragões Não Conhecem O Paraíso’, uma estonteante colecção de contos, que contém pelo menos dois contos que já são clássicos indiscutíveis: ‘Linda, Uma História Horrível’ e ‘Dama Da Noite’. Mas que além desses, tem mais dois ou três contos extraordinários. O meu preferido é o último conto do livro, que tem o título do volume, e que na minha opinião traduz de forma perfeita um dos sintomas não sei se meramente geracional ou se mais abrangente do que isso, e que é sentirmo-nos mal na nossa pele mas sentirmo-nos bem na vida. Estarmos felizes por estarmos vivos, mas termos sempre a lúcida e aguda certeza de que há uma terrível fractura que nos dilacera por dentro.
‘Pedras De Calcutá’ foi um dos primeiros livros de CFA e reflecte o ambiente ainda demasiado enclausurado e asfixiante em que foi escrito. Um livro sombrio, cujos contos, muito curtos, vivem sempre entre dois pólos: a completa submersão (como os textos que abrem cada uma das partes e que nos falam de inevitáveis afogamentos/naufrágios, em que nos afogamos por acção daquilo que trazemos dentro e que não conseguimos mais conter) e a possibilidade redentora de uma ascensão.
A literatura é um mundo mais vasto do que o tempo das nossas vidas. Como é óbvio. Por isso, é sempre muito mais o que desconhecemos do que o que vamos conhecendo. Muito de vez em quando (CFA escreveria ‘vezenquando’) encontramos um autor que, como disse, se cola à nossa pele por dentro. Quando isso me acontece, e já tem acontecido, felizmente, algumas vezes, é uma vontade quase febril de não parar de ler enquanto sabemos que há uma frase escrita pelo autor que aguarda, virginal e poderosa como o deserto ou o oceano, a visita dos nossos olhos. Como digo, tenho mais cinco livros de CFA à espera de leitura. Ou seja, a aventura continua.
Sites sobre Caio:
- caio.itgo.com (site muito completo; inclui contos)
- Releituras (inclui contos)