conto: montarroio
MONTARROIO
São duas fotografias, e cada uma conta a sua história.
A segunda é uma tarde de Fevereiro, o Beco de Montarroio a cheirar a roupa lavada e o sol a brilhar por cima dos telhados.
As paredes brancas das casas encavalitadas na calçada íngreme. A roupa estendida nos varais a secar. O cheiro a detergente para a roupa a espalhar um odor fresco pela rua. Por uma janela aberta, o som surdo de um rádio.
As janelas vazias. A porta entaipada, em ruínas, de um casebre antigo. Lá em cima passam automóveis, mas a meio do Beco não se ouvem. Só o restolhar das asas dos pombos no seu voo rasante.
Não se vê vivalma. Havia crianças a brincar lá em baixo, no pátio. Mas a sinuosidade do Beco abafa a algazarra. Gritavam, ainda há pouco, quando eu atravessei o pátio cheio da brancura espessa do sol a bater de chapa nas paredes. Eu estava sozinho quando subi os dois ou três degraus que anunciam a subida esforçada do Beco. Entrei sozinho por este caminho de sombra, frio e luminoso. Mas aqui a meio do Beco juntou-se-me já uma ausência. Talvez a tua.
Talvez seja o teu corpo que não está ao meu lado. Talvez o esforço da subida tenha deixado o halo morno do teu corpo lá para trás. Só o cheiro a roupa lavada, como os lençóis. Ou o ruído dos automóveis, lá em cima, fora da vista.
Assomo ao cimo do Beco. Abre-se o olhar para a encosta fronteira da cidade, não passam carros, nesse momento, a subir a rua. Olho para trás, parece-me que acabei de atravessar alguma coisa, foi uma travessia, como se houvesse um lugar antes e este momento depois do Beco de Montarroio.
Na primeira história, a outra fotografia, são as primeiras horas da madrugada de uma noite de Verão. Seria Agosto? Subíamos a rua, da Baixa, a fuligem dos incêndios que cercam a cidade colada aos colarinhos abertos das nossas camisas. Parecia que começava a chover, apesar de isso ser tão imensamente improvável numa noite de calor insuportável, sem vento, a cidade rodeada de fogo. Sentámo-nos numa paragem de autocarro, para descansar e para, apesar da improbabilidade, nos protegermos das gotas de chuva que pareciam cair.
Sentado em frente às Escadas de Montarroio. Lá em cima, na mansarda de um velho prédio arruinado, uma janela aberta, um rapaz de torso nu estendido para fora do peitoril, a brasa de um cigarro a arder nos lábios. O teu telemóvel debita mensagens e quando dou por mim estamos os dois calados, há longos minutos, cada um debruçado no seu próprio aparelho, os dedos frenéticos nas teclas. O rapaz lá em cima continua a fumar, e tu vais-me dizendo palavras de circunstância acerca das mensagens e de quem tas envia. Dou-te conselhos, o que deves dizer a quem te conta angústias a poucos cêntimos a mensagem.
É então que o vejo. Um gato sobe a rua, vindo do lado da Polícia, encostado, como fazem os gatos, à parede. Vai farejando os restos do lixo que tombam dos caixotes, um saco abandonado junto a uma paragem de autocarro. Começa a subir os degraus. Desaparece por detrás do muro que faz de corrimão. Á noite todos os gatos são pardos, mas este é negro, como só poderia ser, numa história que se passa à luz plúmbea da noite, entre restos calcinados de fagulhas e imaginárias gotas de chuva.
Eis que aparece mais acima, num dos patamares que separa os lances da escada de pedra. Salta para cima do muro, pára a olhar para o céu. Porque é que os gatos olham para o céu, pergunto-me. Que procuram, que vêem? Que respostas silenciosas dá o céu aos gatos, que a nós só nos devolve o mistério das nossas perplexidades.
A tua voz ao meu lado agora é um sussurro distante. Talvez te tenha chamado a atenção para o gato, mas parece-me que só fiz o gesto com o braço, nenhum som se soltou da minha garganta.
O gato chegou ao cimo da escadaria. Está sentado. Olhará para o céu, de novo? Não, desta vez, olha para a janela onde ainda está o rapaz debruçado para fora a fumar. O gato salta, rápido, e desaparece num pequeno canteiro ajardinado que decora o topo da escada.
São duas fotografias, e cada uma conta a sua história.
A segunda é uma tarde de Fevereiro, o Beco de Montarroio a cheirar a roupa lavada e o sol a brilhar por cima dos telhados.
As paredes brancas das casas encavalitadas na calçada íngreme. A roupa estendida nos varais a secar. O cheiro a detergente para a roupa a espalhar um odor fresco pela rua. Por uma janela aberta, o som surdo de um rádio.
As janelas vazias. A porta entaipada, em ruínas, de um casebre antigo. Lá em cima passam automóveis, mas a meio do Beco não se ouvem. Só o restolhar das asas dos pombos no seu voo rasante.
Não se vê vivalma. Havia crianças a brincar lá em baixo, no pátio. Mas a sinuosidade do Beco abafa a algazarra. Gritavam, ainda há pouco, quando eu atravessei o pátio cheio da brancura espessa do sol a bater de chapa nas paredes. Eu estava sozinho quando subi os dois ou três degraus que anunciam a subida esforçada do Beco. Entrei sozinho por este caminho de sombra, frio e luminoso. Mas aqui a meio do Beco juntou-se-me já uma ausência. Talvez a tua.
Talvez seja o teu corpo que não está ao meu lado. Talvez o esforço da subida tenha deixado o halo morno do teu corpo lá para trás. Só o cheiro a roupa lavada, como os lençóis. Ou o ruído dos automóveis, lá em cima, fora da vista.
Assomo ao cimo do Beco. Abre-se o olhar para a encosta fronteira da cidade, não passam carros, nesse momento, a subir a rua. Olho para trás, parece-me que acabei de atravessar alguma coisa, foi uma travessia, como se houvesse um lugar antes e este momento depois do Beco de Montarroio.
Na primeira história, a outra fotografia, são as primeiras horas da madrugada de uma noite de Verão. Seria Agosto? Subíamos a rua, da Baixa, a fuligem dos incêndios que cercam a cidade colada aos colarinhos abertos das nossas camisas. Parecia que começava a chover, apesar de isso ser tão imensamente improvável numa noite de calor insuportável, sem vento, a cidade rodeada de fogo. Sentámo-nos numa paragem de autocarro, para descansar e para, apesar da improbabilidade, nos protegermos das gotas de chuva que pareciam cair.
Sentado em frente às Escadas de Montarroio. Lá em cima, na mansarda de um velho prédio arruinado, uma janela aberta, um rapaz de torso nu estendido para fora do peitoril, a brasa de um cigarro a arder nos lábios. O teu telemóvel debita mensagens e quando dou por mim estamos os dois calados, há longos minutos, cada um debruçado no seu próprio aparelho, os dedos frenéticos nas teclas. O rapaz lá em cima continua a fumar, e tu vais-me dizendo palavras de circunstância acerca das mensagens e de quem tas envia. Dou-te conselhos, o que deves dizer a quem te conta angústias a poucos cêntimos a mensagem.
É então que o vejo. Um gato sobe a rua, vindo do lado da Polícia, encostado, como fazem os gatos, à parede. Vai farejando os restos do lixo que tombam dos caixotes, um saco abandonado junto a uma paragem de autocarro. Começa a subir os degraus. Desaparece por detrás do muro que faz de corrimão. Á noite todos os gatos são pardos, mas este é negro, como só poderia ser, numa história que se passa à luz plúmbea da noite, entre restos calcinados de fagulhas e imaginárias gotas de chuva.
Eis que aparece mais acima, num dos patamares que separa os lances da escada de pedra. Salta para cima do muro, pára a olhar para o céu. Porque é que os gatos olham para o céu, pergunto-me. Que procuram, que vêem? Que respostas silenciosas dá o céu aos gatos, que a nós só nos devolve o mistério das nossas perplexidades.
A tua voz ao meu lado agora é um sussurro distante. Talvez te tenha chamado a atenção para o gato, mas parece-me que só fiz o gesto com o braço, nenhum som se soltou da minha garganta.
O gato chegou ao cimo da escadaria. Está sentado. Olhará para o céu, de novo? Não, desta vez, olha para a janela onde ainda está o rapaz debruçado para fora a fumar. O gato salta, rápido, e desaparece num pequeno canteiro ajardinado que decora o topo da escada.