ainda Fabrizio
'Na manhã seguinte, muito cedo, Fabrizio entrou numa igreja e, fixando o altar, disse humildemente:
«Pai: não vim pedir-te perdão nem agradecer-te. Só posso pedir-te perdão dos erros cometidos e, quanto às minhas opções, sabes que não tenho culpa. Não vim agradecer-te. É tal a felicidade que me invade, que é como se me fosse dada por um destino: nascida comigo, ou para mim, pelos séculos dos séculos. Vim aqui, Pai, testemunhar-te que ouvi a tua voz e identifiquei o teu sinal. Vim pedir-te que não me faças indigno dele. Vim dizer-te que, ao olhar Laurent, é a ti que descubro: tu já não és invisível, difuso, indiferente, mas vivo, concreto, actuante, confortante. Fonte de amor: amor. Ajuda-me por isso, tu que és amor, a amar. Ajuda-me a consumir-me no amor, a não temer o seu fogo, a não vacilar frente ao risco e ao medo do ridículo, a não traficar, a não aviltar, a não degradar, a não corromper. Ajuda-me a distinguir o verdadeiro amor do falso amor. Ajuda-me a não ceder às emboscadas dos inimigos do amor. Ajuda-me a suportar os ataques dos padres que, do amor, só conhecem o nome. Dos juizes que, com leis adulteradas, dão sentenças sobre o amor. Dos poetas, que elogiam os atributos, não a substância, do amor. Dos moralistas, que encarceram o amor numa prisão de dogmas. Ajuda-me, tu que és amor, agora que o teu tempo chegou.»
(...)
A carta era esta:
«Je t’ai parlé de plénitude: je veux te dire maintenant ce que je vois dans tes yeux. Chacun de nous possédait un paradis qu’un jour nous avons perdu ; la nostalgie de ce paradis nous fait vivre et quelquesfois nous fait mourir. Cela, si tu veux, Laurent, c’est de la litérature ; mais, quand je te regarde dans les yeux, et que tu me regardes un instant, ce n’est pas de la litérature : C’est le temp de Dieu. En toi, je le retrouve. Et je me retrouve mois-même. Je regardais hier soir (nous étions dans le metro) ta peau ; et je me disais : C’est ma peau. De tes mains, je disais : Ce sont mes mains. Je me sens si exalté devant cette découverte ! Je t’aime. Je n’ai plus peur. Tu es grand et beau comme le soleil ; quand tu ris, c’est un rayon de soleil qui sort de toi. Je t’aime.»'
- Carlo Coccioli, Fabrizio Lupo
O segundo trecho contém, lá pelo meio, quase ipsis verbis, uma coisa sobre a qual a
monalise e eu “conversámos” um dia destes. Achei espantosa a coincidência: estava eu a percorrer os sublinhados que fui fazendo ao correr da leitura do livro, quando deparei com essa frase. E achei admirável que, logo a seguir, o Coccioli como que nos dá a resposta, a única resposta possível, para as nossas dúvidas e para as nossas perplexidades. Por isso, minha amiga, esta entrada, com as duas citações do Carlo Coccioli, é-te naturalmente dedicada.
No texto do livro, este extracto da carta em francês segue-se quase imediatamente ao primeiro trecho. Que eu acho sublime. Intenso, profundo, desesperado. E se procurarmos na música das palavras e no ritmo das frases, reparamos que há uma canção escondida neste pedaço de prosa.
Este livro, Fabrizio Lupo, está comigo desde o princípio do Verão. Vou lendo, interrompo, retomo mais à frente, largo-o, pego-lhe de novo, releio, sublinho, anoto. É um livro muito irregular e desequilibrado, há trechos que pedem que os dedos os desfolhem mais depressa do que os olhos, e outros que pedem demora e contemplação. Mas é seguramente, ou vai ser, um dos meus livros, um dos livros que vai ficar comigo. Daqueles a que, sei-o já, hei-de voltar sempre, nem que seja, num dia em que esteja mais desencontrado, para procurar nele um gesto, uma reflexão, um sentimento, uma revolta, um sorriso, uma ingenuidade. Uma sombra. Uma silhueta. Por vezes, mesmo, um retrato a corpo inteiro.
«Pai: não vim pedir-te perdão nem agradecer-te. Só posso pedir-te perdão dos erros cometidos e, quanto às minhas opções, sabes que não tenho culpa. Não vim agradecer-te. É tal a felicidade que me invade, que é como se me fosse dada por um destino: nascida comigo, ou para mim, pelos séculos dos séculos. Vim aqui, Pai, testemunhar-te que ouvi a tua voz e identifiquei o teu sinal. Vim pedir-te que não me faças indigno dele. Vim dizer-te que, ao olhar Laurent, é a ti que descubro: tu já não és invisível, difuso, indiferente, mas vivo, concreto, actuante, confortante. Fonte de amor: amor. Ajuda-me por isso, tu que és amor, a amar. Ajuda-me a consumir-me no amor, a não temer o seu fogo, a não vacilar frente ao risco e ao medo do ridículo, a não traficar, a não aviltar, a não degradar, a não corromper. Ajuda-me a distinguir o verdadeiro amor do falso amor. Ajuda-me a não ceder às emboscadas dos inimigos do amor. Ajuda-me a suportar os ataques dos padres que, do amor, só conhecem o nome. Dos juizes que, com leis adulteradas, dão sentenças sobre o amor. Dos poetas, que elogiam os atributos, não a substância, do amor. Dos moralistas, que encarceram o amor numa prisão de dogmas. Ajuda-me, tu que és amor, agora que o teu tempo chegou.»
(...)
A carta era esta:
«Je t’ai parlé de plénitude: je veux te dire maintenant ce que je vois dans tes yeux. Chacun de nous possédait un paradis qu’un jour nous avons perdu ; la nostalgie de ce paradis nous fait vivre et quelquesfois nous fait mourir. Cela, si tu veux, Laurent, c’est de la litérature ; mais, quand je te regarde dans les yeux, et que tu me regardes un instant, ce n’est pas de la litérature : C’est le temp de Dieu. En toi, je le retrouve. Et je me retrouve mois-même. Je regardais hier soir (nous étions dans le metro) ta peau ; et je me disais : C’est ma peau. De tes mains, je disais : Ce sont mes mains. Je me sens si exalté devant cette découverte ! Je t’aime. Je n’ai plus peur. Tu es grand et beau comme le soleil ; quand tu ris, c’est un rayon de soleil qui sort de toi. Je t’aime.»'
- Carlo Coccioli, Fabrizio Lupo
O segundo trecho contém, lá pelo meio, quase ipsis verbis, uma coisa sobre a qual a
No texto do livro, este extracto da carta em francês segue-se quase imediatamente ao primeiro trecho. Que eu acho sublime. Intenso, profundo, desesperado. E se procurarmos na música das palavras e no ritmo das frases, reparamos que há uma canção escondida neste pedaço de prosa.
Este livro, Fabrizio Lupo, está comigo desde o princípio do Verão. Vou lendo, interrompo, retomo mais à frente, largo-o, pego-lhe de novo, releio, sublinho, anoto. É um livro muito irregular e desequilibrado, há trechos que pedem que os dedos os desfolhem mais depressa do que os olhos, e outros que pedem demora e contemplação. Mas é seguramente, ou vai ser, um dos meus livros, um dos livros que vai ficar comigo. Daqueles a que, sei-o já, hei-de voltar sempre, nem que seja, num dia em que esteja mais desencontrado, para procurar nele um gesto, uma reflexão, um sentimento, uma revolta, um sorriso, uma ingenuidade. Uma sombra. Uma silhueta. Por vezes, mesmo, um retrato a corpo inteiro.